No seio da cultura ocidental, a sexualidade foi predominantemente relegada a uma espécie de vestígio de nossa natureza imperfeita, irracional e selvagem. Com base na metafísica de Platão e Agostinho (a partir da qual a tradição judaico-cristã foi erigida), e sob influência da divisão cartesiana entre mente e corpo, consolidou-se historicamente uma desconfiança constante para com os desejos sexuais. A censura moral sobre as questões do corpo (seus sentidos e prazeres, suas possibilidades e limites) tornou-se, enfim, uma matriz normativa para as relações sexuais, sociais, identitárias etc.

Essa visão, todavia, passou a ser amplamente questionada desde a virada do século 19 para o 20. Os códigos tradicionais relacionados à sexualidade foram aos poucos desnaturalizados e encarados como modos de repressão, culminando na revolução sexual da década de 1960 (associada ao advento da pílula contraceptiva e a intelectuais como Wilhelm Reich). Torna-se, a partir de então, legítimo e crescente o interesse por produtos, saberes e técnicas que intensifiquem a estimulação e o desempenho sexual.

Eis o pretexto a ser problematizado por Michel Foucault no início de sua “História da sexualidade”, cujo primeiro volume foi publicado em 1976. Segundo o filósofo, tanto a privação tradicional quanto a liberação contracultural pressupõem uma verdade sobre o sexo, mesmo que os valores estejam invertidos. Se antes a supressão da libido era condição de dignidade moral (ou redenção da alma), agora o combate à opressão sexual é uma via para a liberdade e a felicidade. O que antes nos corrompia tornou-se meio de salvação.

Mas o que motivou Foucault a investigar, nos volumes seguintes da “História da sexualidade”, o erotismo greco-romano foi, mais do que os processos de legitimação moral da sexualidade, a cadeia discursiva que regula e ao mesmo tempo instaura o nosso trato com o corpo, a experiência de si. O que marca seu pensamento maduro é, entre outras coisas, a ideia de que as relações de poder não apenas reprimem os indivíduos, mas antes os constituem, possibilitando-lhes a própria noção de subjetividade.

Foucault nunca se indagou quanto à sua orientação homossexual, e sim por que ele costumava se sentir diferente por causa dela. Significa que a sexualidade (e os valores que ela veicula) situa-se não somente em relação a outrem, mas também na relação consigo mesmo(a). É a maneira particular pela qual cultivamos o modo de ser que nos constitui. Nunca alheio aos preceitos sociais, é o exercício de experimentar o próprio corpo como um nó de significações vividas e, mais que sentimentos, diferentes modos de sentir.

Assim se reconhece um impulso imponderável, jamais escolhido, que anima nossos gestos e coincide com um corpo que sofre e goza, um corpo que quer viver – ainda que eventualmente sob outra aparência ou meios de estímulo. A dificuldade é que para viver é preciso ser compreendido (por si e pelos outros) para além da legitimação e da mera tolerância. Sem dúvida, a atual pluralidade das definições de orientação, identidade e gênero é imprescindível para tal compreensão, mas a sexualidade se conjuga, antes de tudo, no cuidado de si, na partilha dos afetos, na reciprocidade.

Não há uma lógica que determine a sexualidade, assim como não há razão que justifique suficientemente a dor e o regozijo que implica viver. O que pode haver é, como propõe Foucault, a potência de um corpo que se sente vivo à medida que se conscientiza dos valores, enunciados e relações que o constituem. É isso, afinal, o que somos: nada mais que um corpo a ser compreendido no breve intervalo de toda uma vida.

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